Nos olhos de Margarida
Francisco Ignácio do Amaral Gurgel
O conto Nos olhos de Margarida foi originalmente publicado em 1957 na coletânea Contos e Novelas: seleção de Graciliano Ramos Vol. 3. A transcrição abaixo foi realizada por Guilherme do Amaral Gurgel e está disponível também em PDF:
Se eu fosse uma andorinha, fugiria daqui. Não voaria doidamente como aquele beija-flor tonto que entrou um dia no meu quarto e se ficou debatendo entre as paredes. Não. Eu voaria em linha reta, como uma flecha. Isso mesmo, flecharia para o alto, passaria entre as grades da janela e fugiria desta casa. Há quanto tempo estou neste casarão? Não sei, perdi a memória dos dias. Só me lembro que me tiraram da cadeia e me trouxeram para esta casa de grades também, mas sem os soldados. Eu não gostava dos soldados, só por causa da farda amarela. Se a farda fosse de outra côr, não me incomodaria.
Os soldados daqui — devem ser soldados também — não usam facão na cintura nem se vestem de amarelo. Andam sempre de branco, com um gorrinho engraçado na cabeça. Dão-me boa comida e em quantidade. Não me xingam. São quase bons para mim. Quase bons. Bons de todo seriam se me deixassem sair. Não deixam. Outro dia insisti querendo ir para minha casa. Gritei. Mordi a mão de um soldado de óculos que eles chamam doutor. Os outros correram e me agarraram. Quando me acalmei, estava sentindo dores no corpo, pois me vestiram uma roupa esquisita. Eu ficava com os braços cruzados, e as pontas das mangas amarradas nas costas, sem poder fazer o menor movimento. Depois me aplicaram uma injeção e dormi uma porção de tempo.
Esta gente não é ruim, coitada. São doentes, maníacos. Sinto muita pena deles. O meu vizinho de cela, um ruivo que está construindo uma arca para se salvar no próximo dilúvio, a noite passada me avisou baixinho: — "São todos loucos..." Deve ser isso.
Mas por que será que estou aqui? Custo a me lembrar...
Ah!... Foi numa noite... É isso... Eu matei um homem... Matei o Edgar, o meu melhor amigo. Eu tinha razão para matá-lo. Não contei ao delegado nem ao meu advogado porque não me acreditariam.
O Edgar era meu rival. Ele não sabia disso, coitado, mas era. Eu vi muitas vezes. Minha mulher... Pobrezinha! Ela também, decerto, não tinha culpa. Ainda ontem veio visitar-me. Gostei que viesse. Chorou quando me viu. Devo ter mudado muito. Tenho a cabeça raspada, uso esta roupa de uniforme, os pés inchados não cabem nos sapatos, e sou obrigado a andar de chinelos...
Margarida era ainda criança quando nos casamos. Tinha dezenove anos. Eu já passava dos trinta. Ela gostava de mim. Não tivemos filhos. Foi um desgosto para nós dois. Dez anos, não sei se é isso, acho que sim. Dez anos... Depois começou a minha doença. Um medo absurdo, pavor tremendo de ser enganado, trocado por outro...
Minha mulher não mudara. Sempre carinhosa, meiga, boa. Só ficara mais bonita, cada dia mais. E os meus cabelos, os que ainda não tinham sido levados pela calvície, estavam ficando brancos. Rugas profundas marcavam-me o rosto. Minha vista cansada exigia óculos. Era o começo do fim.
Envelhecer! Envelhecer é sempre terrível, porém mais terrível é envelhecer junto a uma mulher bonita e moça e desejada por todos. Minha mulher, a minha Margarida, não seria capaz de me enganar. Amava-me bastante para ter a coragem de suportar, sem uma queixa, o frio daquele inverno que chegava, branqueando-me os cabelos, invadindo minha alma. Mas... e se me traísse? Eu a mataria. A dúvida martirizava-me. O ciúme tirava-me o sono.
E foi numa das tristes e longas noites em que nem as fortes doses de láudano me faziam dormir que descobri o segredo.
Margarida dormia... Eu a contemplava na semi-escuridão do quarto. Passei noites e noites assim, esperando um gesto, uma palavra que lhe escapasse durante a inconsciência do sono e a traísse. Mas nessa noite vi que um suspiro leve, leve, passou deixando em seus lábios um sorriso.
Escutei. Suspendi a respiração para conseguir ouvir o nome do homem, com quem ela sonhava. Não o disse. Obriguei-a a sentar-se, brutalmente, puxando-a pelos cabelos. Sacudi-a com violência. Ela acordou com um grito de dor, e, antes que pudesse acalmar-se do susto, indaguei:
— Você estava sorrindo... Estava sonhando... Com quem? Com quem?
Margarida, branca pelo susto, com os olhos muito abertos, pronta a rebentar em soluços, respondeu:
— Sonhava com ele...
E vendo, talvez, a transformação do meu rosto, sentindo as minhas mãos que lhe apertavam os braços, acrescentou em lágrimas:
— Com ele, o nenê... O nenê que nós não tivemos.
Chorou a noite toda.
Margarida chorou. Mas estava mentindo. Ele era outro. E eu o matei.
Foi engraçada a morte do Edgar. Foi uma coisa muito engraçada! Quase tão engraçada quanto aquele gato que assei vivo. Assei um gato quando eu era ainda meninote. Teria uns dez anos, talvez. Era um menino esquisito. Um dia, aproveitando uma distração da tia Idalina, peguei o seu Chaninho, um gato sem-vergonha e preguiçoso que andava o dia inteiro chupando fôlego numa ronqueira dos diabos. Lacei o peste com uma cordinha, depois amarrei-lhe as patas e fui pendurá-lo, de barriga para cima, no galho de um cajueiro, no fundo do quintal. O gato ficou com a cabeça pendurada, o corpo feito uma bola, dando pinotes e miando como um amaldiçoado. Gato é bicho do diabo. Arranjei uns galhos secos, uma porção de folhas, papéis velhos, e fiz uma fogueira embaixo do galho em que o gato estava pendurado. Enquanto o fogo era pouco, Chano miava alto e procurava escapulir. Depois o fogo foi subindo, as labaredas aumentaram. A primeira língua de fogo lambeu o pêlo tratado do Chano. Aí é que foi divertido! O demônio deu um balanço que quase arrebentou a cordinha. E não parou mais. Parecia uma bola louca, pulando, pulando e miando. A fumaça tonteou um pouco o bicho. Ele foi perdendo as forças, os miados tornaram-se longos, mas já não eram tão agudos. Parecia dizer aaaíííí!... aaaiiiii! ... Eu não aguentei mais, comecei a rir. Ria, ria, ria. Já me doíam as costelas de tanto rir. Sapateava no chão, apertava a barriga com as mãos, mas não conseguia deixar de rir. A fumaça que o vento soprava para o meu lado ardia-me nos olhos e as lágrimas corriam. E eu ria, ria, ria... Depois não vi mais nada. Só me lembro de que estava numa cama, minha mãe perto de mim, meu pai carrancudo, braços cruzados no peito, junto à porta, olhando-me. O médico, que também estava no quarto, o Dr. Giovani, disse a meu pai:
— Está fora de perigo, mas necessita um tratamento muito sério.
Quando me levantei, dias depois, minha tia andava pela casa resmungando que eu tinha o diabo no corpo, que precisava uns benzimentos. Nunca mais vi o gato. Acho que morreu o coisa-ruim.
Era assim que havia pensado em matar o Edgar. Amarrá-lo de pés e mãos e pendurá-lo em cima de uma fogueira. Infelizmente não apareceu ocasião para isso. Se eu conseguisse levá-lo comigo para uma caçada, havia de fazer isso. Mas ele andava desconfiado e recusou o convite. Foi então que resolvi matá-lo de qualquer jeito. Eu estava no alto da escada em minha casa quando Edgar chegou para fazer a sua visita costumeira. E eu, com a mão no bolso do paletó, segurava a automática. Edgar veio subindo, meio arcado para a frente. Quando chegou no alto, foi logo me estendendo as mãos, sorrindo, a perguntar como estávamos. Mas não chegou a falar. Puxei o gatilho e não pude mais soltar o dedo. Seis tiros seguidos. No primeiro percebi que Edgar fora atingido. Ergueu o rosto para mim, os olhos espantados, a boca aberta, as mãos crispando-se a apertar a barriga, dobrando-se até quase encostar o queixo nos joelhos. E caiu de costas, rolando como uma bola. Isso mesmo, como uma bola suja que ia marcando de vermelho os degraus da escada. Quando chegou lá embaixo, os pés ficaram para o alto, nos degraus, e o corpo enrolado no capacho. Parecia o gato que assei. Achei engraçado. Comecei a rir. E quando me seguraram, eu ainda ria cansado. Chegou uma porção de gente, um homem veio com uma seringa e senti uma agulhada no braço. Dormi sossegado, sem sonhos. Edgar estava morto. Margarida já não pensava mais nele.
Foi naquela noite que desconfiei. Comecei a observar Margarida e pouco a pouco, de tanto tentar, de muito estudar, consegui chegar à perfeição de ler os pensamentos de minha mulher. Ler? Não, ver o pensamento.
Uma tarde, quando cheguei em casa, ao beijá-la, notei que ela cerrava os olhos. Tinha medo que eu visse os olhos dela, pensei. Comecei a observar. Notei que dentro dos olhos de Margarida, no círculo pequeno e negro, existia um homem, em miniatura, mas era um homem. Segurei-lhe o rosto, como se fosse agradá-la e olhei-a, bem dentro dos olhos. Nos olhos de Margarida estava o meu amigo Edgar. E ao jantar, quando sorria, quando ficava esquecida de tudo que a rodeava, olhando as nuvens no retalho de céu que a janela emoldurava, ao deitar-se, sempre, a tôda hora, lá estava, no fundo dos olhos de Margarida, a figura do meu amigo.
Então, era assim que ela me enganava? Sem coragem para me trair, enganava-se a si mesma. Beijava-me pensando no outro. Traição toda espiritual, mais dolorosa, porém, que qualquer outra. Comecei a odiar o Edgar. Ele roubou a alma da minha mulher. O que eu possuía, o que eu desejava, era um corpo. Um corpo lindo e vazio. Morto, sem alma.
E, naquela tarde, quando ele chegou e subiu a escada de mãos estendidas para mim, descarreguei a arma. Se fosse um gato, teria miado — e seria mais engraçado.
Durante o tempo em que estive preso não me arrancaram uma palavra. Chegou o dia do julgamento. O promotor público levantou-se e começou a chamar-me bárbaro desumano. Contou como matei Edgar. A posição em que foi encontrado o corpo, com os pés ainda nos degraus, as mãos amparando os intestinos perfurados, todo enrolado no capacho cheio de sangue... Falava tão bem, explicou de modo tão perfeito, que revi a cena.
E ri, ri, ri... Levaram-me para fora, rindo sempre.
Veio o médico. Outra injeção. Quando acordei, estava nesta nova prisão. Dizem que estou louco. Às vezes me recordo de Margarida, tão boa, tão meiga e sinto pena. Do Edgar, não. Quando ele caiu... rolando pela escada...
Estão vendo? Vou rir outra vez...
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