Amanhã é domingo
Francisco Ignácio do Amaral Gurgel
O conto Amanhã é Domingo foi originalmente escrito por Amaral Gurgel para o concurso de contos do Semanário Dom Casmurro em 1939. Alcançou a sexta colocação, recebendo votos de Graciliano Ramos e Oduvaldo Vianna. A publicação original foi acessada através da Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional e se encontra ao fim desta página. A transcrição abaixo foi realizada por Guilherme do Amaral Gurgel e está disponível também em PDF:
Uma... duas... três...
Três horas. A noite não queria terminar. Como não terminava a longa cisma em que ficara mergulhado José Lage.
Lage sentado à beira da cama olhou para a mulher que, agora, dormia calmamente. Suspirou cansado. Canseira da noite insone. Canseira da vida estúpida que era a sua. Canseira de ser ele mesmo sempre igual.
Cotinha gemeu baixo e se virou na cama, continuando a dormir. Naquela noite ela tivera um acesso. Há mais de dois anos que essa doença havia desaparecido. E essa noite...
José Lage, com os pés descalços, procurou as chinelas. Um café era bom. Foi se arrastando para a cozinha num andar miúdo.
Ao acender o fogareiro, suspirou ainda:
- Vida!... Vida de...
e uma palavra suja atravessou o bigode encardido que lhe tapara a boca.
José Lage nascera há muito tempo. Ele tinha a impressão de que já vivia há séculos. Mas o seu registro de nascimento dava-lhe apenas 48 anos. Desse tempo, 42 anos apagados e indiferentes. Não foi feliz nem chegou a ser desgraçado.
Foi quando conheceu Cotinha. Isto é, já a conhecia antes. Mas ela era a filha de Siá Bilú, a dona da pensão em que ele morara. Depois foi aquela tolice. Num certo domingo, ao almoço, inventaram de dizer que o Seu Lage estava ficando um velho solteirão. A Cotinha, lá, do outro lado da mesa, protestou. Que não, que o Seu Lage valia mais que muitos mocinhos, era um homem de ideias amadurecidas.
Ideias amadurecidas... Aquela frase teve a culpa de tudo. Lage gostou da frase e tomou conhecimento da existência de Cotinha. Aquela Cotinha que passava dias inteiros apoiada nos cotovelos e deitada de bruços sobre romances de Delly.
Cotinha contava que já completara 23 anos. Siá Bilú dava mais um ano de idade e centenas de dotes morais para a filha. Seu Lage ofereceu seu nome a Cotinha e, com ele, o direito de partilhar sua vida. Vidinha de 500$000 mensais.
O noivado seguiu-se com as tolices todas que existem em todos os noivados. E num sábado e sob uma chuva enfileiraram-se automóveis para uma corrida até a igreja. Mais um contrato indissolúvel foi feito.
Durante mais de quinze dias passearam eles as suas caras inexpressivas pelas ruas de São Paulo e serviram de motivo para as anedotas dos garçons e hóspedes de um hotel barato. Chamaram a isso Lua de Mel...
De volta, a vida continuou quase a mesma. Os primeiros meses não foram melhores que os demais, talvez piores. Lage foi temperando com a sua passividade covarde os atritos que surgiam. Com tudo a gente se acostuma...
Mas, certa noite - seis meses de casados - Cotinha, após uma xingação que começou pelo destino e terminou pelo marido, ficou com as mãos muito frias, os lábios embranqueceram e perdeu os sentidos. Lage atarantado, fez tudo o que já ouvira dizer ser bom para aquele caso. Queimou trampos fumacentos, buscou vinagre, panos molhados e quando já desanimava e estava disposto a chamar um vizinho, Cotinha respirou profundamente, abriu os olhos, agarrou-se ao marido e começou a soluçar desesperadamente. Depois venceu-a uma sonolência pior que o desmaio. De tempos em tempos, pela noite, segurava o marido e gritava. Ele indagava, medroso:
- Que foi, Cotinha? O que você tem?
E ela, os olhos muito abertos, as mãos de dedos crispados a arrepelar os cabelos:
- A roupa... Precisa lavar a roupa...
- Que roupa, Cotinha?
- Você já chegou para almoçar? Hoje não fiz almoço, Lage, estou com dor de cabeça...
Lage, com mais pavor que carinho, procurava acalmar a mulher:
- Dorme, Cotinha. Não digas bobagens... Dorme...
E ela recaía no travesseiro queixando-se: “A cabeça... dói... dói muito...”
No dia seguinte, Cotinha levantou-se tarde. Com grande olheiras e um gênio mais insuportável que o de costume. Lage falou em levá-la a um médico. Ela protestou:
- Para que? Não tenho nada...
E depois de uma pausa, abruptamente, pondo no marido os olhos pequenos e vivos:
- Lage, diga, com toda franqueza, você tem outra mulher aí por fora?
- Eu?! - E o pobre Lage quase entornou o café num espanto sincero - Que ideia boba! Por que você pergunta isso?
- Nada... Bobagens...
E levantou-se mole para ir lavar os pratos.
Por mais umas duas ou três vezes, em meses consecutivos, repetiu-se a doença de Cotinha, aquela doença esquisita à qual Lage dera o nome de “acesso”.
Não obstante os protestos da mulher, ele a levou por fim a um médico do lugar. Ao entrar no consultório, Cotinha, num sorriso de dentes bonitos, foi avisando:
- Não é nada, doutor. O Lage é que é muito nervoso e fez questão que eu viesse pro senhor me examinar.
Lage, meio gago, em pé junto da mesa do médico, foi mastigando todos os pormenores daqueles acessos e terminou:
- Ela depois fica como louca, variando com tudo o que se passou durante o dia. Parece que está acordada e só fala bobagens. No dia seguinte está boa novamente e não se lembra de nada...
- Há quanto tempo estão casados? - Interrogou o médico.
- Quase um ano, doutor...
- Têm filhos?
Cotinha que se distraía a olhar o quadros pelas paredes, respondeu rindo:
- Filhos, doutor? Não tenho e estou melhor assim.
Mais uma série de perguntas perfeitamente inúteis e o médico mandou que Lage esperasse na sala de fora. Precisava que Cotinha respondesse a algumas perguntas longe do marido. Sem um protesto, numa humildade de cão sem dono, ele obedeceu.
Muito tempo esperou ali, sentado, murcho, a cabeça pendida, num grande abatimento. Um viajante de produtos farmacêuticos procurou puxar conversa:
- O senhor está doente?
- Não, senhor... - Uma pausa.
- O senhor está?...
- Também não...
Longa pausa. Besteira, dois homens que se encontram num consultório médico. Nenhum está doente. Falar sobre que assunto, então? E ficou nisso. Depois Lage passeou a vista medrosamente pela sala. Uma mulher com uma criança no colo... Um rapaz bem vestido. Uma velha (devia ser mãe da mulher-com-a-criança-no-colo, pensou ele). O viajante que não estava doente. Baixou novamente os olhos. Escorregou os dedos magros para um bolso da calça. Apalpou um embrulhinho lá no fundo. Era a nota de 20$000 para pagar a consulta... Lembrou-se do vale que fizera. Vinte blocos fora do orçamento. Não se contando a farmácia..
- Sua filha nem parece doente.
Ergueu a cabeça. Fôra a velha quem falara. Ela insistia olhando a cara apalermada de Lage:
- Não é sua filha a moça que o doutor está examinando?
- Não, senhora... É minha mulher...
A porta abriu-se e um avental (Lage só viu o avental) ordenou:
- Entre, Seu Lage.
Nunca pôde o Lage entender as explicações que dera o médico. Só se lembrava que ouvira uma porção de palavras que terminavam em “emia”, “óse”, “tenia”... Depois falou em complexos, recalques e tantas coisas mais! Como é possível um homem guardar tudo isso na cabeça! - admirava o Lage. Pudera! É doutor, estudou, tem obrigação de saber. Se ele não soubesse isso tudo não seria doutor e não poderia ganhar os 20$000... Apalpou depressa o bolso. A nota ainda lá estava, dobradinha...
E voltaram ao médico outras vezes. E a conta na farmácia subiu. E os acessos continuaram a se repetir. Finalmente Cotinha explodiu:
- Chega de médicos e remédios. Esses doutores só sabem falar difícil. O que tenho bem sei...
Mas não disse o que era. Continuaram empurrando a vida. Lage julgava que era a vida que o empurrava. E talvez tivesse razão. Um ano, outro, ainda outro. Até com a doença a gente se acostuma, Lage se acostumou.
Um aumento de 50$000 no ordenado, três dias com gripe e um baile em casa do Quinzote Carteiro foram os três maiores acontecimentos desse tempo todo...
De todos o maior mesmo foi o baile. Como não dançasse, Lage ficou tomando uma cerveja e conversando com o Quinzote. Queixou-se da doença da mulher. Passava bem por algum tempo e, de repente, vinha aquela coisa. No dia seguinte estava boa outra ves. Só os nervos é que sofriam. Ultimamente dera para sentir ciúmes. Um inferno! Ciúmes dele, Lage, que, coitado, já estava entregando os pontos.
- Por que não procura o Luizinho farmacêutico? - Perguntou o Quinzote.
- Ché!... Já levei ela no médico e nada. Um remedinho em gotas, umas injeções caras e ficou tudo do mesmo jeito. A comadre Zefa fez uns benzimentos e parece até (Deus que me perdoe!), que foi pior. Até na sessão espírita já levei e perdi a esperança. Aquilo é de família... Um tio morreu no hospício...
- Pois olhe, o Luizinho tem dado volta em muita gente desenganada. O senhor deve experimentar. Não custa. Pra essa história de nervos o Luizinho é mesmo milagroso - e enumerou uma porção de curas do seu conhecimento.
Quando, no dia seguinte, Lage contou à mulher a conversa que tivera, ela protestou. Que não tinha nada, dizia. Pra que ficar gastando à toa na farmácia? Mas Lage tanto insistiu que, afinal, lá foram os dois procurar o Luizinho milagroso.
Luizinho estudara farmácia por ser um curso de poucos anos e também porque podia ser feito lá mesmo, no interior. Era farmacêutico, mas podia ser outra coisa qualquer. Até mesmo jornalista ou professor da faculdade do lugarejo.
Cotinha gostou dos modos de Luizinho. Não apalpava a gente; não mandava tirar a roupa...
- Bom sujeito. Rapaz direito! - confirmou o Lage - Não quis cobrar a consulta, só o remédio.
- E nada de drogas estrangeiras. Uma fórmula dele mesmo.
Abençoado baile! Abençoado Luizinho!
Cotinha melhorava a olhos vistos. E não só os acessos desapareceram. Foi uma melhora geral. Ela acordava cedo, disposta. Passava o dia cantando. Acabou-se a elumeira. Como era boa a vida!
Lage que antes raramente saía à noite, passou a ser um assíduo frequentador de cafés e cinemas. E era Cotinha mesmo quem aconselhava que fosse. Ela raramente o acompanhava.
- Vai! - dizia ela - você precisa se distrair. Trabalhou o dia todo. Eu prefiro ficar bordando. Ou talvez vá fazer uma visita pra mamãe.
E ele ia, principalmente às sessões cinematográficas das terças-feiras. Eram os dias das fitas seriadas. Fitas com um mocinho de ombros largos e peito estufado que fazia de tudo e tudo bem feito.
José Lage pensava: os personagens das histórias de cinema têm sempre uma aventura atrás de outra... Ele não. Foi sempre o mesmo. Serviço, casa, banco dos jardins aos domingos, cinema... Sempre igual. Igual demais.
Tivera uma aventura... Fazia muito tempo. Uma mulher-da-vida quis bater nele. Ele passou quinze noites sem sair de casa. Aventura besta... Também foi só.
A maior aventura foi mesmo o casamento. Mas até isso entrou para as coisas do costume. Não que a vida dele fosse parada. Era que ele tinha a faculdade de parar a vida, mesmo a de quem se aproximasse dele. José Lage imaginava-se uma lagoa muito funda. A chuva podia cair na maior violência, transbordava um pouco e depois tudo voltava à mesma tranquilidade antiga. Devia ser isso. Uns nascem com alma de rio. Ele nascera com alma de lagoa, ou pântano, pensava aborrecido.
Uma terça-feira, porém, foi diferente. Ele esteve ocupado até mais tarde e quando chegou para o jantar, pouco faltava para a hora do cinema. Cotinha serviu o jantar apressada.
- Não precisa se afobar, Cota. Eu não vou hoje ao cinema.
- Não vai? Por que?
- Já é muito tarde...
- Vá comendo que ainda dá tempo. Então você vai perder um episódio? - Cotinha falava num vai-e-vem entre a cozinha e a sala - no que mesmo que parou?
Lage abriu o rosto num sorriso. Coisa rara nele, um sorriso. Mas o seu maior gosto era contar fitas de cinema. E Cotinha era a única que o escutava com atenção.
- Parou... Espera, já me lembro...
- Na hora em que os bandidos assaltam a casa da mocinha... - ajudou Cotinha.
- Isso mesmo! Tem uma bomba relógio que está estoura-não-estoura. O mocinho...
- Toma a sopa, senão você perde...
Ele engoliu o jantar, vestiu o paletó ajudado pela mulher e correu para o cinema.
Chegou na hora. Estava começando a exibição do complemento nacional. Uma paisagem pessimamente filmada. Umas terras safadas. No fundo, uma casa de tábuas. Um rio muito largo e uma balsa com um negro rindo. Depois uma ilha não-sei-de-onde. Muito mato. Uma mulher - devia ser mulher - estava no alto de um morro com uma coisa na mão. A coisa era um chapéu. Ficou sabendo quando a figura apareceu em primeiro plano, sorrindo idiotamente. (Aquela devia ser a mulher do fotógrafo ou do mandão do lugar, pensou o Lage). Um trecho do sul, depois. Gente entrando de carroça dentro do mar para ir tomar um vapor. O vapor balançava... A projeção era tremida...
Vendo o vapor, Lage pensou em viagens. Contavam que a gente enjoava. Sentiu uma coisa no estômago. Parecia engolir um ovo inteiro. Terminou o nacional, terminara a propaganda do Brasil...
Começou o drama. Uma fotografia maluca de um prédio muito alto. A máquina ia subindo... Entrava por uma janela, percorria um escritório e parava defronte à mesa de um homem gordo e de bigodes brancos. Depois ia até a porta buscar uma loira magra que entrava com um caderno e um lápis na mão. Lage adivinhava o resto. Ela, a loira, iria gostar do filho do homem gordo. A mulher do homem gordo, uma velha de lorgnon, de cabeça espetada para o alto, sem formas, escorrida, iria protestar. O homem gordo ofereceria um cheque para a loira. Mas ela, chorando, recusaria. Todo o cinema iria gostar. Menos o Lage. Moça tonta! Cheque... Dinheiro... Automóvel... Peixes ensopados... Novamente o estômago protestou contra a ideia de comidas. Um arroto veio lá do fundo. O vizinho de cadeira olhou repreensivamente.
Uma tontura e Lage voltou a pregar os olhos na tela. Agora estava chegando a hora da velha escorrida protestar. O casal estava almoçando. Um criado de braços em arco andava como um peru em volta da mesa. O velho gordo empurrou o prato - ovos com presunto. O estômago venceu. Lage desistiu do seriado e saiu do cinema.
Na rua, respirando o ar puro da noite, sentiu-se melhor. Mas não se arriscou a voltar para o cinema. Foi para casa. Tomaria um pouco de bicarbonato.
Ao chegar à casa já estava quase bom de todo. A porta estava fechada. Por que seria? Cotinha teria ido visitar a mãe? Mas a janela estava aberta. Bateu. Custaram muito a abrir. Quando Cotinha viu o marido assustou-se.
- Não é nada, - explicou ele - o jantar depressa me fez mal.
Na sala de jantar encontrou o Luizinho. Cotinha explicou muito rapidamente que tivera uma vertigem, a ameaça de um acesso.
- Por que não me chamou no cinema?
- Quem iria? Eu estava sozinha. Quando melhorei um pouco fui até a janela... Queria chamar alguma vizinha... O Luizinho ia passando...
- ... Entrei, examinei-a e fui à farmácia buscar um remédio... Um comprimido que ela acaba de tomar - completou o Luizinho.
E o mesmo Luizinho foi quem preparou o bicarbonato para Lage tomar. Conversaram até mais tarde. Quando o farmacêutico retirou-se, Lage acompanhou-o até a porta, agradecendo, pela centésima vez, tudo o que fizera pela Cotinha.
Ao voltar para a sala em que estava a esposa, Lage chamou Cotinha e, olhando-a bem dentro dos olhos, falou:
- Não faça mais isso, viu?
- “Isso” o que? - perguntou Cotinha com os olhos miúdos quase cerrados, numa maneira sua de esconder o que sentia.
- Isso de ficar doente e não me chamar. Podia ter pedido a algum vizinho que telefonasse do botequim do Seu Fernandes. Não era preciso incomodar o Luizinho...
Ficou em silêncio por algum tempo, desapertando o laço da gravata. Depois:
- Cotinha.
- Hein?
- Como será que o mocinho se salvou, não?
Foi também esse o único episódio em que Lage perdeu em toda a sua carreira de acompanhador de fitas em série.
Outros dias vieram. Outros meses passaram. Lage mandou fazer um terno novo. Reparou que a barriga havia crescido. Cotinha continuava a mesma, ou, antes mais bonita.
- Você vai sair mesmo, quando voltar traga uma aspirina. Estou com muita dor de cabeça hoje.
A dor de cabeça da mulher trouxe Lage mais cedo para casa. Quando chegou ela já está a deitada. Dei-lhe o comprimido e, como era hábito seu de toda noite, enquanto se preparava para deitar, passou a fazer jornal-falado da cidade:
- Sabe? O Benedito teve uma criança.
- O Benedito?
- A mulher dele... Vai se chamar Teodolindo por causa do padrinho...
- E o Sebastião, como vai?
- Está melhor. Logo sai da Santa Casa. O prefeito prometeu montar um outro jornal para ele. Também que papel feio o do coronel Quincas mandando surrar o rapaz só por causa de uma notícia!
- Mas também aquilo é notícia que se dê, Lage?
- Ora, Cota, a obrigação de um jornal é informar o povo de tudo o que se passa. O Sebastião foi à delegacia, o doutor contou a desgraça da filha do coronel Quincas e o trabalho que estava tendo para descobrir o safado do rapaz. Qual era a obrigação dele como jornalista?
- Mas não precisava escrever do jeito que ele escreveu...
- Ué!... Ele só copiou dos autos o que disse o médico legista...
Coçou demoradamente os pés e, enfiando a calça do pijama, Lage deu a maior novidade do dia:
- Notícia que me alegrou foi do Luizinho. - Enfiando-se debaixo das cobertas continuou: - Ficou noivo hoje. Quem havia de dizer! Vai se casar com a Alicinha, a filha da viúva Gomes. Um partidão! Dizem que a sogra já prometeu dar uma fazenda de criar como presente de casamento. Estão numa festança! O Quinzote me contou que champanhe está rolando... Por que será que não fomos convidados. Pois se até o Zeca Fogueteiro, que é amigado, recebeu convite! Será que o Luizinho zangou com a gente? Faz tempo que ele não aparece! Por que será, hein?
Cotinha não respondeu. Lage insistiu na pergunta e estranhando o silêncio sentou-se na cama.
- Cota!
Sacudiu a mulher. Ela continuava sem responder, deitada de bruços com o rosto sobre os braços cruzados.
- Está chorando, Cotinha?...
Suspendeu a mulher pelos ombros e virou-a na cama. Mordendo os lábios, muito pálida, Cota estava sem sentido.
- Nossa senhora! - e Lage saltou da cama. Sacudiu a mulher, esfregou-lhe os pulsos. Nada. Foi descalço mesmo à cozinha. Trouxe vinagre, um vidro de água de melissa... A custo Cotinha deu sinais de vida. Abriu os olhos. Respirou profundamente. Os maxilares apertados fez com que demorasse muito para falar. Quando pôde dizer alguma coisa, perguntou:
- Por que você está acordado ainda, Lage?
- O que é que você tem, Cota?
- Nada... Nada... - e rompeu em soluços. Lage procurava saber o motivo do choro e, mansamente, acariciava a esposa. Estava com medo. Sabia que depois da choradeira ela iria dormir. Aquele sono esquisito, cheio de sonhos, de alucinações... Se ela ficasse louca!... Lage tinha pavor de doidos.
Pouco depois Cotinha foi vencida por aquele sono terrível, cheio de suspiros, de palavras incompreensíveis. Lage continuou ali, junto dela. Sabia a noite que lhe estava reservada. O relógio da igreja bateu onze badaladas. Lage ali, ao pé do leito. Subitamente veio o que ele tanto receava. Ela gritou e, sentando-se na cama, com as feições alteradas gritou:
- Luizinho! Luizinho!
- Que é isso, Cota?! Amanhã eu chamo o Luizinho pra ver você. Hoje não vale a pena incomodá-lo. Dorme...
Ela segurou o marido pela gola do pijama numa raiva surda, dominando o choro pronto a explodir em soluços:
- Por que você fez isso? Por que, hein? Você quer dinheiro, não é?
- Larga de bobagens... - pedia medrosamente Lage.
- Por que você vai se casar? Com a Alicinha, aquela... - e veio um nome pavoroso - A mãe dela tem dinheiro, não é? Eu não sirvo pra nada. Já está enjoado de mim...
Pela primeira vez, em 48 anos, uma dúvida surgiu no espírito do pobre Lage... Ele que nunca duvidara de nada. Que acreditava, sem indagar, em todos os mistérios da religião. Que sempre acreditara em fantasmas e almas do outro mundo. Que apoiava todos os governos na certeza absoluta de que salvariam o Brasil. Que nunca duvidara, um só momento, da amizade de todos que conviviam com ele. Ele, que sempre acreditara na fidelidade da mulher, teve um momento de dúvida. Uma dúvida terrível, angustiante, que doía fisicamente. Num rápido instante passou pela sua mente toda a sua vida de fracassado. Nesse momento teve a infelicidade de sair de dentro de si mesmo e se olhar à distância, como um estranho. Quem era ele? Aquele homem baixo, barrigudinho, de cabelos poucos e brancos. De bigodes escorridos sobre a boca cheia de dentes estragados. Olhos pardos de cor indefinível, escondidos por trás de grossas lentes. Um empregado dos Correios, um vendedor de selos e fazedor de registrados... Olhou a mulher que recaíra no sono: os cabelos muito pretos derramados sobre o travesseiro. Os olhos, agora cerrados, mas que ele sabia vivos e brilhantes. Os lábios carnudos entreabertos deixando ver dentes lindos. Os braços morenos, sobre o lençol, estendidos aos lados do corpo bem feito. Os dedos longos... As mãos macias... Continuou a se olhar do lado de fora. Viu-se ao lado da mulher, passeando. Ela era muito mais alta, tinha pose. Ele apagado, colarinho duro de pontas viradas, o guarda-chuva pendente do braço, a gravata de laço feito... Via-se até nos mínimos detalhes. Chegou a ver as ceroulas compridas de amarrar sobre os tornozelos que nunca deixara. Sentiu pena daquele sujeito que estava em sua frente que era ele mesmo. E, no fundo de tudo, a dúvida terrível... Lembrou-se de alguém contar de hipnotizadores que faziam perguntas aos pacientes. De pessoas que, quando dormindo, respondem as perguntas que se lhes faça. Contavam até que a diretora de um colégio para meninas usava esse sistema para descobrir o que suas educandas pensavam a seu respeito...
Trêmulo, nervoso, como alguém que fosse cometer um crime imperdoável, chamou:
- Cota! Cotinha...
Ela não respondeu. Lage passou-lhe a mão pelo rosto. Segurou-lhe o pulso e tornou a chamar:
- Cota...
- A cabeça... Está doendo...
Respiração entrecortada pela emoção, vermelho, com vergonha dele mesmo. Lage perguntou:
- Você gosta do Luizinho?... Teve... Alguma coisa com ele?...
A resposta custou, depois veio numa mistura confusa:
- A cabeça dói... Ele vai se casar... A Alicinha não presta... Eu sei. Ela me contou o que fez com um moço no Rio. Você paga... Paga sim Luizinho... Você prometeu que nunca casava... Se o Lage soubesse...
Já não era possível a dúvida. Mas agora Lage sentia um prazer estranho. Uma sensação que nunca sentira. Uma espécie de gozo. Uma forma dolorosa de emoção.
- O Lage sabe, sabe tudo... - falou para Cotinha.
- Não sabe... Ele é um velho tonto. Só sabe contar fita em série. O Lage não sabe...
- Você gosta do Lage, Cota?
- Gosto nada... Casei pra não ficar solteira. Eu tenho é pena do coitado. Tenho muita dó dele. É tão bom!... Tem ajudado tanto minha mãe... Não gosto... Tenho dó dele...
Lage não perguntou mais. Ficou ali, cismando...
Nas horas que se seguiram, reviveu toda a sua vida. Desde sua meninice com os cabelos compridos, para serem cortados em Aparecida do Norte (promessa da tia) até essa noite. Quando dentro de si mesmo uma voz estranha repetiu: “tenho dó dele...”, o relógio da igreja marcou, no silêncio da noite, três horas. Parou Lage aquela volta ao passado. Como era longo o seu passado!... Como a vida é longa!... Morrer devia ser bom... Um cafezinho era bom...
A água chiou na fervura. O cheiro do café tomou toda a cozinha. Cozinha bem arrumada. Cota era caprichosa no arranjo da casa.
Lage tomou o café. Depois perguntou a si mesmo:
- E agora, Seu Lage?
Cotinha era culpada. Um crime para o qual os homens só conheciam uma pena: - a morte. Lembrava-se de um colega que matara a mulher por “questão de honra”, conforme explicou o advogado. O júri absolveu o assassino por unanimidade de votos. Matar! Era horrível! Lage jamais mataria alguém. Requerer desquite? Isso era para gente da alta. Ele nunca vivera. Iria para uma pensão. Já agora não poderia voltar para a pensão de Siá Rita. Coitada da Siá Rita! Iria chorar tanto quando soubesse!
Separar-se de Cotinha seria solução? Alguém na cidade saberia da história? Ninguém sabia decerto; nunca recebera cartas anônimas... O Luizinho casava-se. Ia pra fazenda. A Cota tinha dó do homem que escolhera para marido. Dó! Que humilhação. Mas tudo na vida era humilhação. Ele sequer poderia tomar satisfações ao Luizinho. Devia 400$000 na farmácia. Devia mais 500$000 ao Luizinho, empréstimo da ocasião em que viera uma inspeção ao Correio...
Cotinha sentia dó dele... Devia ter remorsos do que lhe fizera. Talvez quisesse agora pagar a sua culpa tornando-o feliz. Mas em toda a sua vida, qual foi o tempo em que se sentira feliz? A única felicidade que experimentara fôra nesses últimos dois anos. Cotinha era boa para ele... Encantava ele contar as fitas de cinema. Interessava-se pelos perigos dos mocinhos... Coitada da Cota. Aquilo do Luizinho fora uma fraqueza... (... o Lage não sabe...) Ela sentia dó dele. Era doente, coitada! O médico dissera (... ele é um velho tonto...) Canalha fora o Luizinho, que chamado para curar a Alicinha... Ia embora de uma vez... Cotinha havia de sentir, coitada!... (... tem auxiliado tanto minha mãe...) Cotinha, tirando aqueles acessos, era uma boa esposa... Não tinha mais ciúmes... (... Tenho dó dele...) Amanhã ela não se lembraria de mais nada. O Luizinho vai embora para a fazenda... Quarenta e oito anos... Ir para onde? O que tinha sido a vida dele? Toda a sua vida reunida não valia aquele momento de angústia em que sentira um prazer estranho ouvindo a mulher revelar o seu amor culpado. Ele [ilegível] fizera um papel daqueles... (Casei pra não ficar solteira...) Também, agora, poderia fiscalizar a vida da mulher. Saberia tudo que ela pensasse. Havia de comparar o que ela dissesse durante o dia com o que falasse dormindo. Ele poderia fazer essa coisa estranha, entrar dentro de uma alma. Era uma sensação maior que a do médico que vê o corpo internamente. Ele teria em suas mãos a alma de sua mulher em toda a sua nudez vergonhosa. E poderia ter pena da esposa... Ter dó de alguém! Sentir piedade é uma forma orgulhosa de ser superior...
- Lage! - chamou Cotinha assustada.
Nos seus passos miúdos correu Lage para o quarto. Abeirou-se do leito sem nenhum rancor, com um sorriso estranho sob os bigodes [corridos].
- Você se levantou, por quê?
- Nada... Perdi o sono e fui fazer um café. Você quer uma xícara?
- Não... Vem deitar. Amanhã você precisa ir trabalhar.
- Amanhã, não. É o meu domingo de folga.
- Amanhã é domingo?! Am... O que você quer comer amanhã, hein, Lage?
- Galinha.
- ... Com batatas e salada de tomates, não é meu maridinho? Agora vem dormir.
GURGEL, Amaral. Amanhã É Domingo. in: Dom Casmurro, Rio de Janeiro, ed. 115, p. 3, 26 ago. 1939.
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