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Altamira do Sul

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Este é um projeto sobre encontros e distâncias, sobre passados e presentes, sobre arte e sobre humanidade(s). Se iniciou com uma tatuagem que meu amigo Maurício Artiquelino fez em meu braço retratando um dos bisões de Altamira, caverna na Espanha onde foram encontradas pinturas milenares feitas por nossos antepassados. A partir dela, eu pintei uma tela a óleo, acrílica e pastel oleoso, que abre esta postagem, e colei o papel de esboço da tatuagem bem ao centro. Nas postagens abaixo, vocês poderão ver as oito colagens digitais que desenvolvi em homenagem ao(s) artista(s) de Altamira e os textos que escrevi para cada etapa. Foram inicialmente postadas em meu Instagram @g.agurgel e estão a venda como prints enumerados (só serão produzidos três de cada imagem). Também pretendo, em breve, transformar em um pequeno livro e lambe-lambes a serem espalhados pela cidade. A tela foi entregue ao Espaço BB Arte - Atelier Jeannette Priolli para ficar exposta ao público a partir da segunda semana de setembro.

 

Os prints serão impressos em papel fotográfico, com alta qualidade, em tamanho A3. O valor de cada venda, obviamente, será dividido entre eu e os fotógrafos que contribuíram com o projeto. Eles serão entregues com enumeração e assinados, se for do interesse do cliente eu me disponho a escrever à mão o texto que acompanha o print comprado no verso do mesmo. Consulte comigo a disponibilidade da peça desejada.

 

Para ajudar a cobrir os custos que tive até aqui e que ainda terei com impressão dos lambe-lambes, livros e prints, confecção e pintura da tela, compra de materiais, deslocamentos necessários e compra de um domínio para este blog, lancei uma campanha de financiamento coletivo no site Apóia-se. Vocês podem conferir em: apoia.se/altamiradosul. Lá vocês podem conferir as descrições dos custos com mais detalhes. Qualquer contribuição será muito bem vinda.

 

Participaram (até agora) neste projeto:

Daniel Grimoni - prefácio do livro (ainda a ser lançado)

Maurício Artiquelino - tatuagem

Max Rodrigues - fotografia

Tetsuo Shiino - fotografia

Yu Frazão - fotografia

 

O Espaço BB Arte Ipanema - Atelier Jeannette Priolli fica na Rua Barão da Torre, 135, casa 01, Rio de Janeiro. Os horários de funcionamento podem ser consultados no site bbarte.com.br

 

Saudações,

Guilherme Gurgel

Altamira do Sul, Século LI

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Algo aconteceu ao longo dos milênios (são pelo menos três e meio) que nos separam dos bisões de Altamira. A caverna pré-espanhola que pré-civilizados cobriram com a mais sofisticava pintura fez Picasso dizer “Depois de Altamira tudo é decadência”. Acima de tudo, o que mais me choca é o olhar, um olhar pré-humano e trans-humano que só era possível numa época em que a humanidade ainda não era uma experiência concreta. A chave de qualquer segredo já foi perdida, e não tem nada mais antiquado do que buscar por elos perdidos. Mas uma coisa eu sei quando eu olho para os bisões de Altamira, seja lá quem pintou, era mais semelhante a seus bisões do que a nós. E isso é admirável. Ao longo da próxima quinzena postarei aqui uma série de oito imagens dedicada aos autores de Altamira. A primeira pergunta que deixo é: como medir as distâncias que nos separam deles?

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Em três mil anos inventaram uma porção de coisas, mas faz muito pouco tempo que inventaram de sentar na janela de um ônibus às duas da manhã e colocar uma música para tocar nos fones de ouvido enquanto assiste a cidade passando. Tem uma pichação no Largo da Carioca que diz “O Rio é uma merda, mas é o meu lar”. O Rio é muitas coisas, só não é o que dizem dele. O Rio é muito ferro, concreto e asfalto esquentando ao sol, banhado por nuvens de poeira de obra e escapamento de caminhão. É gritaria de vendedores ambulantes, motoristas de ônibus e crianças brincando. Tem cheiro de maresia, fumaça de carro e churrasco de rua. Faz sempre calor. Gosto daqui, é igual a todas as cidades.

 

No Corcovado, quem abre os braços sou eu

Copacabana, esta semana, o mar sou eu

Como é perversa a juventude do meu coração

Que só entende o que é cruel, o que é paixão

E as paralelas dos pneus n'água das ruas

São duas estradas nuas

Em que foges do que é teu

No apartamento, oitavo andar

Abro a vidraça e grito, grito quando o carro passa

Teu infinito sou eu

 

[Belchior]

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“O trabalho dos policromos da Grande sala é considerado por Múzquiz, a autora de várias das reproduções, como o trabalho de um único autor."

 

"Tinha um traço firme e decidido, conhecia à perfeição a anatomia dos animais que pintava, de fato não se encontram retificações do desenho.” 

 

[Retirado da Wikipédia]

 

Nasceu na Caverna de Altamira do Sul, Rio de Janeiro, Brasil. Filho de uma bruxa com um gênio da lâmpada, filho do século XXI antes de cristo, que cobriu cavernas com os mais belos retratos bovinos. Que tinha bom traço e uma mão firme, que tinha gente disposta a caçar em seu lugar para que pudesse se dedicar a sua arte. Conferia luz, sombra e volume sem precisar de papel de rascunho, trabalhava a cor de maneira impecável com sangue de animais, terra e plantas. Se tivesse nascido uns milênios mais tarde, talvez tivesse tido o azar de ser chamado de artista virtuoso. Teria precisado pintar seu nome em cada trabalho para que ninguém confundisse a autoria. Na falta de uma legislação milenar que cubra tão longo período de tempo, eu proponho assinar Altamira em cada obra de arte que tenha surgido depois.

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Em 2011 a Record Tv destruiu com tinta branca pinturas rupestres em Diamantina (MG), com mais de 4 mil anos de idade, para gravar uma novela bíblica.

 

Em 2014 uma ação do Greenpeace danificou irreversivelmente um dos desenhos de Nazca, no Peru, feitos há milhares de anos.

 

Em 2018 a negligência do Estado brasileiro incendiou o Museu Nacional, fazendo-nos perder acervos linguísticos de centenas de povos, o nosso fóssil humano mais antigo, diversas coleções de paleontologia, itens de valor inestimável de povos africanos e indígenas, todo o trabalho de cerca de 90 pesquisadores e muito mais.

 

Em 2020 o agronegócio destruiu desenhos milenares na Amazônia para plantar milho.

 

A história não é escrita apenas sobre o que preservamos, mas também sobre o que escolhemos perder. O meu filme favorito se chama O Abraço da Serpente, ele termina com a mensagem “O filme é dedicado à memória de povos cuja canção jamais conheceremos”.

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Leroi-Gourhan escreveu em 1964 um livro chamado chamado “Religiões da Pré-História”. Ele cobre um período de tempo de quase três milhões de anos, abordando um tema evidentemente complicado. Você pode pensar, “isso é assunto para pelo menos alguns volumes enormes”, mas o livro tem 150 páginas. E há um bom motivo para sua brevidade, nós temos pouquíssimas pistas sobre como viviam nossos antepassados. 

 

Como então entrar em contato com esse passado? Eu disse que tem a ver com medir distâncias, três milhões de anos podem ser menos que dez a depender de como você olha para o que tem a sua frente. Arte, em grande parte, é sobre se fazer milhares de anos mais ancestral que seus pais, mais distante do ano de 1964 do que de dez mil antes de cristo. Tem a ver com buscar proximidades e distâncias. A física newtoniana pode encarar o tempo como uma linha reta, para a arte ele não poderia ser mais diferente disso.

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"O bisão encolhido é uma das pinturas mais expressivas e admiradas de todo o conjunto. Está pintado sobre uma avultação da abóbada. O artista soube encaixar a figura do bisão, encolhendo-o, pregando as suas patas e forçando a posição da cabeça para embaixo, deixando fora unicamente o rabo e os cornos. Tudo isso destaca o espírito de observação naturalista do seu realizador e a enorme capacidade expressiva da composição."

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Fui preservador de filmes e salvei da ação do tempo memórias petrificadas em rolos de acetato de celulose, era engraçado que falássemos em termos de centenas de anos. Cinema não existe há muito mais de um século e mesmo assim a maior parte do que já foi feito está perdido. Os bisões de Altamira foram preservados graças a uma rocha que tampou a entrada da caverna por milênios e impediu que nossos antepassados mais recentes destruíssem o que nossos antepassados mais antigos haviam criado. Estes mesmos haviam pintado seus bisões por cima de outras pinturas mais ancestrais, das quais só restaram rabiscos. "A velhice é um privilégio das rochas e das árvores" disse Szymborska, embora estas últimas possam não estar muito seguras disso. Se vamos queimar todas as Bibliotecas de Alexandria para tirar boas crônicas desses eventos, talvez devamos nos preocupar se ainda restará alguém para ouvi-las. Na medida de distâncias, lembramos melhor dos artistas de Altamira do que do dia em que nascemos. E isso ainda não é nada.

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A pintura mais antiga já encontrada talvez seja um padrão quadriculado feito sobre uma pedra onde hoje chamamos de África. Isso me trás de volta ao que falei aqui sobre distâncias: o que era aquilo? Conseguimos identificar bisões, veados e caçadores e conseguimos forçar algumas barras para chamar um círculo de Sol, um traço de lança ou até uma figura disforme de divindade. Mas como explicar na nossa linguagem de século XXI aquilo que não podemos fazer nada além de descrever, "padrão geométrico"? Eu me divirto imaginando uma história de absurdos em que encontramos o tal artista virtuoso de Altamira preservado em um bloco de gelo e elogiamos a ele seus bisões, ao que ele responde "e de onde vocês tiraram que aquilo era um bisão?". Ou ainda que dissesse "mas eu os detesto, tudo deu errado naquela pintura, não era para ser daquela maneira". E então o que mais poderíamos lhe dizer? Mostrar toda a arte que se fez depois da sua, mostrar o que pintamos hoje nas paredes de nossas cavernas de concreto, mostrar como tratamos nossos bisões enjaulados e as coisas bonitas que seus irmãos pré-históricos fizeram? Gostaria de ouvir suas reflexões sobre nós. Em especial gostaria de ouvir o que esse artista pensa do Rio de Janeiro em que eu moro e onde produzi minha contribuição milenar ao seu trabalho. Nessa impossibilidade, pinto por ele os bisões do Sul do mundo, no Século 51 depois de Altamira.

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